26 de janeiro de 2015

A Pipoca - Rubem Alves

A culinária me fascina. De vez em quando eu até me atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de “culinária literária. Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nóbis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.

Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo – até porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
  
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca.
   
A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...
   
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
   
E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa – voltar a ser crianças!
   
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.  Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão – sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
   
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUM! – e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
    
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. “Morre e transforma-te!” – dizia Goethe.
    
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas “piruá” é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: “Fiquei piruá”!Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.  Piruá são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: “Quem preservar a sua vida perdê-la-á”!A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
     
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...


Rubem Alves (In: O Amor que acende a Lua)

22 de janeiro de 2015

Querer não é poder

Bom dia! Primeiro post do ano com um tema recorrente e pertinente ao início de um novo ano: quero, mas não posso ou não consigo. Atire a primeira pedra que nunca passou por isso...

2015 começou e com certeza algumas coisas não estão ocorrendo conforme o planejado... pode ser o vestibular que não passou; a promoção que não veio; o aumento de impostos que ninguém estava esperando, enfim, os exemplos são inúmeros.

Quantas coisas sonhamos, idealizamos, corremos atrás que, ou não acontecem ou quando acontecem, não é no tempo que queremos.

Fazer nossa parte, mesmo da melhor maneira possível não é garantia para coisa alguma. É simplesmente nossa parte que foi bem feita! Claro que nossas chances de bom resultado aumentam, mas... não há 100% de garantia. É doloroso constatar isso, já que é muito difícil para o ego vislumbrar sua limitação perante um todo muito maior que seu desejo e vontade. Reclamamos, lamentamos, esperneamos tanto... A tensão emocional da frustração pode até ser aliviada dessa forma, mas nenhum resultado diferente acontece com isso.

Quantas pessoas atendi, quantos momentos pessoais vivencie, em que tudo que estava ao alcance não foi apenas feito, mas "bem feito" e no final o resultado não foi o esperado. Que raiva, quanta frustração... Pode acontecer do impacto para o ego ser tão intenso, que pessoas chegam a adoecer. Atendi alguns casos de Crise de Pânico que tinha como base exatamente isso.

Ficar na posição do "ego esperneante", tal qual uma criança pequena com ataques de birra porque não conseguiu o que queria, não levará a lugar algum! Entraremos em um ciclo vicioso, a frustração será retroalimentada  e o adoecimento psíquico e físico poderão até se intensificar.

Se não aconteceu, algum aprendizado intrínseco tem, por mais doloroso que seja admitir isso. Como menciono sempre em meus posts: a visão da psicologia analítica é prospectiva: em tudo há uma finalidade maior. Ficar preso na frustração do "não aconteceu como eu queria", mina todo o potencial de aprendizado e possibilidade de novos olhares e perspectivas sobre o acontecido.

Num post antigo de 21 de abril de 2009 (Um discurso inspirador - http://lilianloureiro.blogspot.com.br/2009/04/um-discurso-inspirador.html) compartilhei o discurso de Steve Jobs como paraninfo de uma turma. O discurso é belíssimo, vale a pena assistir. Uma das partes que mais gosto e que diz respeito ao tema abordado aqui e a história dos pontos. Remete àquela brincadeira de criança de ligar os pontos para visualizar uma imagem ao final. Na vida fazemos isso o tempo todo: ligamos os pontos do que vivenciamos e assim temos uma visão mais ampla da relevância que certos acontecimentos tiveram em nossas vidas para nos tornarmos quem somos hoje.

Jobs enfatiza o passado, só podemos ligar os pontos do que já passou, não dá para ligar o que ainda vai acontecer. O que está por vir não é ponto ainda para ser ligado.

Desta forma, querer não é poder, por mais que o ego queira tanto isso. Frustrações fazem parte do processo de individuação de cada um. E a depender da forma como lidamos com ela, teremos a oportunidade de aprendizado e crescimento enormes. Elas podem nos impulsionar, nos tirar da zona de conforto e denunciar que mudanças precisam ser feitas! A promoção pode não ter vindo porque a fluência no inglês ainda não está tão boa; espernear não levará a lugar algum... Bora se matricular em um bom curso de inglês...

Sempre temos que fazer nossa parte, da melhor maneira possível. Tendo consciência de que é APENAS a nossa parte e não o todo. É como sempre digo para meus clientes e pacientes, temos que garantir nosso 50%, a vida se encarrega do resto...

Abraços,
Lilian Loureiro